Etapa de análise de currículos, que responde por 10% da nota total, é motivo de queixa de milhares de candidatos. FGV e estatal ligada ao MEC, responsáveis pelo exame, afirmam que garantem ‘rigidez, transparência e isonomia’. O Enare é organizado pela Ebserh, com apoio da FGV, e conta com a adesão de mais de 160 instituições
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“Estou tendo crises de ansiedade diariamente. Acabaram com a minha saúde mental ao zerarem minha nota”, afirma Andressa Nietto, candidata do Exame Nacional de Residência Médica (Enare) 2025, o “Enem dos residentes”. A candidata é uma das que aponta inconsistências nos critérios de seleção de médicos para vagas de especialização em hospitais brasileiros na atual edição do exame.
➡️Segundo relatos, vídeos e documentos enviados ao g1, alunos de pelo menos 6 estados receberam notas injustificadamente baixas, principalmente “zero”, na etapa de avaliação de currículos e de histórico escolar (entenda mais abaixo).
“É um erro gigantesco. Estou há 3 anos estudando para passar em uma vaga de residência no Rio de Janeiro, para aí chegar a parte mais importante do processo, justamente a que prova o quanto me esforcei durante o curso de medicina, e me darem zero?”, questiona.
🩺O que é Enare? Depois dos 6 anos de graduação em medicina, o médico pode optar por ser especialista em alguma área (cardiologia, pediatria, ginecologia etc.) e se inscrever em um curso de residência de algum hospital. O Enare é justamente uma prova única que seleciona médicos para vagas em mais de 160 estabelecimentos de saúde do país inteiro.
Em 2024/2025, são 89 mil alunos participantes. Eles disputam 8,7 mil vagas.
Todo o processo seletivo é organizado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), vinculada ao Ministério da Educação (MEC), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
🗣️O que dizem os envolvidos? A Ebserh afirma que, “imediatamente após tomar conhecimento dos relatos de possíveis inconsistências na análise curricular, solicitou apuração da FGV”. Já a própria FGV diz que os recursos serão devidamente apreciados e que “reitera seu compromisso com a rigidez e a isonomia do exame”.
Entenda o tamanho do prejuízo
💉Médicos, especialmente recém-formados, alegam que cumpriram todas as exigências do edital (bom desempenho nas disciplinas ao longo da graduação, presença em congressos e participação em atividades de pesquisa e em estágios, por exemplo) e, ainda assim, não pontuaram. Outros admitem que receberam pontos a mais, de maneira misteriosa, por certificados que sequer apresentaram.
Na nota final do Enare, 90% dos pontos vêm da prova de conhecimentos, aplicada em 20 de outubro de 2024, e 10% são relativos a essa análise de currículos.
“São dois anos de estudo para a residência, mais de 30 mil questões realizadas e muitos momentos dos quais abdiquei para estudar”, diz Vitor Dantas, de Guanambi, no interior da Bahia.
“Tenho colegas com o mesmo histórico escolar que eu e que, depois de entrarem com recurso, conseguiram a correção. Como é possível zerar o meu? É inadmissível.”
Juliana Andrade, de São Luís, enfrenta o mesmo problema: ela tem os números dos protocolos de quando enviou os documentos, mas o sistema atribui nota zero a ela.
“A análise curricular feita pela banca organizadora afirma que o histórico escolar não foi anexado. Sendo assim, invalidaram a análise, ignoraram e zeraram meu histórico escolar. Várias pessoas sendo beneficiadas com pontuações por certificados inexistentes, e a maioria com os currículos não avaliados ou avaliados erroneamente. O processo perdeu totalmente a credibilidade”, diz.
Inconsistências no Enare: veja a linha do tempo
08 de janeiro: a FGV publica os resultados preliminares das análises de currículos. Estudantes relatam que suas notas estão erradas.
10 de janeiro: a FGV e a Ebserh tornam “sem efeito” o resultado da primeira análise curricular.
14 de janeiro: são publicados os novos resultados.
15 e 16 de janeiro: quem ainda se sentiu lesado pela avaliação entra com recurso no site do Enare.
21 de janeiro: resultados finais, pós-recursos, são divulgados. Parte dos estudantes continua afirmando que, mesmo após cumprir todos os requisitos acadêmicos, ficou com nota zero no histórico escolar, sem nenhuma justificativa específica.
A partir desta terça-feira (28), os candidatos do Enare devem usar suas notas finais para se inscrever em opções específicas de residência — por exemplo, cirurgia cardiovascular no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, ou ginecologia e obstetrícia na Santa Casa de Misericórdia de Votuporanga (SP).
Como as vagas são disputadas, a possibilidade de haver algum erro nas notas pode facilmente eliminar um candidato injustamente e aprovar o que não era tão qualificado.
Candidatos entram com ações judiciais
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Diante do desespero, estudantes entraram na Justiça para pedir a revisão das notas.
“A FGV está dando respostas vagas aos alunos, como ‘indeferido ou parcialmente deferido, veja detalhamento na página de respostas’. E o detalhamento é ‘documento não enviado’”, afirma a advogada Arsênia Breckenfeld, que representa 16 candidatos do Enare.
“O site não especifica qual foi a exigência supostamente desrespeitada. Vem uma resposta genérica. Isso é um desrespeito à isonomia entre os concorrentes.”
➡️Em Florianópolis, Vitor de Carvalho enviou documentos iguais aos de seus colegas, mas só o dele foi recusado. “Tive o segundo melhor desempenho do país na prova objetiva para minha especialidade (87 pontos) e, mesmo assim, não vou ser aprovado”, diz.
Ele conseguiu uma liminar da Justiça, na 1ª Vara Federal de Blumenau, para “determinar às autoridades impetradas que promovam a análise do histórico escolar”. Mesmo após a decisão, de 24 de janeiro, a FGV e a Ebserh não se pronunciaram, conta Vitor.
➡️Outra candidata, Giovana Lins, de João Pessoa, relata que teve pontos injustamente cancelados, enquanto recebeu nota “extra” por um documento que sequer enviou. “Vou ter de pagar R$ 6 mil [com advogados] para corrigir um erro que não é meu. Meus documentos estão corretos, mas continuo com 10 pontos a menos do que deveria. É muito triste. Estão acabando com o meu psicológico”, afirma.
➡️A espera pelo resultado da decisão judicial abala os estudantes. Carlos Vinícius busca uma vaga de residência no Ceará, na especialidade de clínica médica, e teve problemas com sua nota. Depois de entrar com recurso administrativo no próprio Enare, alguns artigos escritos por ele e eventos aos quais compareceu foram validados — mas seu histórico escolar, não.
“Já protocolei ação judicial contra a FGV/EBSERH e estou aguardando a análise do juiz. É lamentável que os candidatos estejam tendo de tomar medidas drásticas para tentar de alguma forma resolver todo esse transtorno. Minha saúde mental encontra-se abalada, estou extremamente desgastado e consumido por tudo que estou enfrentando nos últimos dias”, conta.
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Fonte: G1 Read More