Uma das primeiras mulheres negras formadas em Medicina no Brasil, Iracema de Almeida ajudou centenas de outras pessoas negras a ascenderem profissionalmente e foi pioneira no estudo da anemia falciforme no país, mas hoje sua história é pouco conhecida. Uma das primeiras mulheres negras formadas em Medicina no Brasil, Iracema de Almeida foi pioneira no estudo da anemia falciforme no país e lutou pela profissionalização de pessoas negras em plena ditadura militar
Arquivo pessoal/Raphaella Reis
“Dizemos com muito orgulho e responsabilidade: nós somos brasileiros vivos. Não queremos mais, queremos o igual”, discursou a médica Iracema de Almeida (1921-2004) na Câmara de Vereadores de São Paulo, em 11 de outubro de 1976.
Ela falava como presidente do Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros (GTPLUN), que ajudou a fundar em 1972, com o objetivo de promover a melhoria econômica da população negra através da profissionalização.
Isso em plena ditadura militar, quando a ideia de que o Brasil seria uma “democracia racial” era parte do discurso oficial.
“Minha avó era uma pessoa muito movida pela força do ódio”, lembra a advogada Raphaella Reis, uma das netas de Iracema, em entrevista à BBC News Brasil.
“Ela contava que, certa vez, ela precisou ir a um órgão público ajudar um amigo de Gana que estava vindo para o Brasil e ela precisava informar onde ele iria ficar”, conta.
“Ela chegou ao prédio, que ficava no centro, e não deixaram ela entrar, dizendo que aquela não era a porta dela, que ela precisaria entrar pela porta de serviço. E ela respondeu: ‘Eu não vou entrar pela porta de serviço, porque não sou sua empregada.'”
Raphaella conta que sua avó então explicou que era médica e que estava ali para realizar um protocolo e registrar seu endereço para o amigo que estava vindo do exterior. Ela teria recebido como resposta que “gente como ela” não tinha casa em endereços como aquele.
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Iracema teria então olhado em volta e visto que no local havia apenas pessoas brancas – a única pessoa negra presente era uma faxineira fazendo a limpeza.
No dia seguinte, a médica teria mandado sua faxineira (uma mulher branca) para realizar a tarefa. E a faxineira teria sido recebida no edifício sem maiores problemas.
“Então ela juntou um pessoal para oferecer formações para pessoas negras, para lotar órgãos públicos de servidores negros. Ela queria lotar escolas de professores negros, encher as faculdades de São Paulo de gente negra, como professores e como estudantes”, diz Raphaella, sobre o que teria motivado Iracema a se unir ao GTPLUN.
Iracema foi presidente do GTPLUN, grupo criado em 1972, com o objetivo de promover a melhoria econômica da população negra através da profissionalização
Arquivo pessoal/Raphaella Reis
“Iracema de Almeida, mutatis mutandis, era para a geração negra do pós-guerra o que é hoje o Frei David para a geração dos que lutam para ingressar nas universidades”, escreveu o professor e poeta Eduardo de Oliveira (1926-2012) em sua enciclopédia Quem é quem na negritude brasileira (CNAB, 1998).
No verbete dedicado a Iracema, Oliveira compara a médica ao religioso franciscano fundador da Educafro, organização que desde 1993 já ajudou mais de 100 mil jovens negros e de baixa renda a ter acesso ao ensino superior através de seus cursinhos populares.
“Não tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente, mas a conheço como uma irmã da causa”, diz Frei David.
“A luta dela pela educação foi determinante, foi estratégica e gerou resultados. Muitos negros que foram beneficiados por ela naquele período ajudaram a construir um clima mais propício para mostrar que, dando oportunidade, o negro dá o pulo da vitória.”
Mas o fundador da Educafro não é o único que não teve a oportunidade de conhecer Iracema de Almeida.
Apesar de ter sido uma das primeiras mulheres negras formadas em Medicina no Brasil, de ter colocado em prática o lema “uma sobe e puxa a outra” antes mesmo dele existir, e de ter sido pioneira no estudo da anemia falciforme no Brasil (doença genética e hereditária mais frequente na população negra), Iracema de Almeida é hoje pouco conhecida do público em geral e até mesmo dentro do movimento negro brasileiro.
Conheça a história dessa pioneira na luta pela profissionalização do negro no Brasil e por que sua polêmica afiliação política pode ter contribuído para seu apagamento histórico.
Mulher negra com duas graduações na década de 1950
Iracema de Almeida nasceu em 31 de agosto de 1921, conforme registra seu diploma da Escola Paulista de Medicina (EPM, hoje ligada à Universidade Federal de São Paulo), numa família paulistana negra de classe média.
Isso era algo raro num país que havia abolido a escravidão apenas 33 anos antes (em 1888) e onde, até pelo menos os anos 1960, mais da metade da população negra era analfabeta.
José Correia Leite, um dos principais jornalistas da imprensa negra paulista no início do século 20, registrou a condição confortável da família de Iracema em um trecho do seu livro de memórias E disse o velho militante José Correia Leite (Ed. Noovha América, 2013).
“Chegando à casa de uma família negra, eu vi uma coisa que fazia muito tempo não via mais nas famílias de classe média: um sarau musical bonito (…) Naquela visita, depois eu vim a saber que nós estávamos na casa dos pais da moça que se tornou depois conhecida, a Dra. Iracema de Almeida”, lembrou Leite, sobre acontecimentos do ano de 1947.
A própria Iracema atribuía a condição favorável de sua família à profissionalização, mas observava que a vida de um negro de classe média naquela época também não era fácil.
“Minha avó por parte de pai era lavadeira e por parte de mãe era cozinheira e a partir daí todos foram profissionalizados: chapeleira, costureira, meu avô, tintureiro, então nós estivemos num meio assim com um pouco mais de conhecimento”, disse a médica em entrevista publicada em 1980 no periódico da imprensa negra Jornegro.
“A minha vida também não foi fácil, não venham falar que minha vida foi fácil, porque meu estado emocional foi pior do que se vivesse no meio do negro pobre. No meio dos negros nós não teríamos o dia todo a agressão que senti e que vivia num meio que não me aceitava e que a toda hora me lembrava que eu estava ali e que não era aquele meu lugar.”
Entre os lugares incomuns para mulheres negras na São Paulo das décadas de 1940 e 1950, estava o ensino superior.
Basta lembrar que apenas a partir dos anos 2000 o percentual de mulheres negras com formação universitária superou os 2% no Brasil – em 2022, esse patamar era de 11% considerando a população com 25 anos ou mais, acima dos homens negros (7%), mas abaixo de homens e mulheres brancas (22% e 18%, respectivamente), segundo o IBGE.
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Fonte: Censos 1960-2022 do IBGE. Elaboração: Núcleo de Estudos Raciais, Insper. Não houve declaração de raça no Censo de 1970. Negros incluem as categorias ‘preto’ e ‘pardo’ utilizadas pelo IBGE.
BBC
Iracema teve não só uma, mas duas formações de nível superior. Primeiro, diplomou-se em piano pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, em 1941. Depois, cursou medicina na EPM, formando-se em 1951.
“Ela decide ser médica porque, no contexto onde ela estava, não tinha atendimento, era na base do cházinho. E mesmo que tivesse ali um consultório, um hospital, pessoas como ela e a família dela não eram atendidas”, diz Raphaella.
Iracema se formou pela Escola Paulista de Medicina em 1951, numa época em que era muito incomum mulheres negras terem acesso ao ensino superior no Brasil
Biblioteca Nacional/Acervo Realidade
“Ela se especializou em cardiologia, mas depois viu uma necessidade muito maior, onde ela estava – ela morou na Zona Leste de São Paulo a vida inteira – de ginecologia e obstetrícia. E foi aí que ela fez o nome dela.”
Estabelecida na Vila Prudente, Iracema mantinha no bairro dois consultórios, um em que atendia clientes pagantes, e outro “em que atendia, gratuitamente, a população carente da redondeza, de quaisquer matizes”, registrou Oliveira em sua enciclopédia da negritude.
“Ela não tinha só o consultório gratuito, ela entrava nas favelas, com o dinheiro dela pagando remédio, para fazer consultas. E ela dava preferência absoluta ao atendimento de mulheres”, acrescenta a neta de Iracema.
GTPLUN
Em outubro de 1972, Antonio Leite – um mineiro que completou seus estudos já adulto, e com isso ascendeu na carreira pública, posteriormente se tornando empresário – teve a ideia de criar uma entidade que lutasse pelos direitos da população negra. Chamou dois amigos para a empreitada.
Faltava alguém com mais experiência na questão racial, daí veio o convite para Iracema de Almeida, que já vinha há alguns anos promovendo palestras e dando orientações “procurando levar uma mensagem de autodeterminação e desenvolvimento da comunidade carente, sobretudo dos jovens negros”, escreve o historiador Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e autor de artigo sobre o GTPLUN.
“O GTPLUN surge nos anos 1970 como um grupo de profissionais liberais e universitários negros que visava dar coesão social e política para uma pequena, mas significativa, classe média negra em São Paulo”, diz o historiador Rafael Petry Trapp, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e autor de outro estudo sobre o grupo, em entrevista à BBC News Brasil.
Os deputados Adalberto Camargo e Theodosina Ribeiro, o ator Grande Otelo, a médica Iracema de Almeida, o poeta Eduardo de Oliveira e o atleta Adhemar Ferreira da Silva: parte de uma minúscula ‘elite negra’ no Brasil dos anos 1970
Reprodução
Domingues observa que, no entendimento do GTPLUN, a escolarização, e especialmente a instrução formal, constituía o grande mecanismo de superação para os negros brasileiros.
Assim, entre 1973 e 1978, o grupo ofereceu diversas formações, como cursos de datilografia, de auxiliar de enfermagem e treinamento para futuros office boys, caixas e escreventes.
Como presidente do GTPLUN, Iracema também usava sua influência para criar relações com os governos municipal e estadual de São Paulo, para desenvolver mecanismos de assistência para as comunidades negras de trabalhadores e de pessoas de baixa renda.
“Para a doutora Iracema, a questão era que os negros não estavam em posições de poder”, diz a historiadora Cassie Osei, professora da Bucknell University, que estudou a médica brasileira em um dos capítulos de sua dissertação de doutorado.
“Então ela, como uma médica, alguém que tinha um status de privilégio de classe, tentou usar seus recursos financeiros, seus recursos políticos e relacionamentos para criar um ambiente para a construção de uma base de poder para as pessoas negras em São Paulo.”
Osei cita como exemplos desse uso de recursos o fato de Iracema ter ajudado o jornalista Hamilton Cardoso (1953-1999), importante ativista do movimento negro, a pagar a matrícula da faculdade — conforme relatado pelo próprio Cardoso em um texto.
A médica também era proprietária da que era considerada a mais completa biblioteca sobre África da São Paulo dos anos 1970, que serviu de base de estudos para muitas ativistas e intelectuais negros da época, conforme relato do professor e ativista Henrique Cunha Jr.
Por fim, Osei lembra do relato do campeão olímpico negro Adhemar Ferreira da Silva sobre o empenho de Iracema para colocar negros no Itamaraty.
“Ela facilitava, do seu próprio bolso, os estudos para que os negros pudessem galgar posições diplomáticas. E ela sempre foi combatida”, disse Silva em uma entrevista recuperada por Rafael Trapp.
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Candidatura pela Arena e alinhamento ao regime militar
Mas, para realizar seus objetivos em meio aos anos de chumbo, Iracema e o GTPLUN adotaram uma postura de alinhamento ao regime militar, diz Petrônio Domingues, da UFS.
Segundo o historiador, os parâmetros ideológicos do grupo presidido pela médica eram “francamente integracionistas e nacionalistas”.
“O grupo era alinhado à direita e o perfil da direita no período era de defesa de um projeto nacionalista, patriótico, ufanista e o grupo embarcou nesse ufanismo, disso não tenho dúvida”, diz Domingues.
“E ‘integracionista’ porque o grupo buscava promover a população negra pela via do diálogo, da inserção na base da conciliação — em nenhum instante o grupo ventilou a possibilidade de enfrentamento, de conflito, nada disso”, observa, acrescentando que essa postura “pacífica” difere o GTPLUN, por exemplo, da geração seguinte do movimento negro, que viria a formar o Movimento Negro Unficiado (MNU), ao fim da década de 1970.
Iracema de Almeida em encontro com o general Emílio Garrastazu Médici em 1975
Arquivo pessoal/Raphaella Reis
O pesquisador lembra que, em 1968, Iracema chegou a lançar-se candidata a vereadora de São Paulo pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido que servia de base de apoio à ditadura militar — embora sua candidatura tenha sido impugnada pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), legenda de oposição ao regime, por motivo desconhecido.
Em 1969, Iracema também fez o curso da Escola Superior de Guerra (ESG), conforme relatado por ela mesma em perfil publicado sobre ela naquele ano pela revista mensal Realidade.
“Para mim é complexo ler artigos de pesquisadores que tratam minha vó como uma simples pessoa preta de direita”, diz Raphaella Reis.
“Ela foi alguém que, dentro de uma ditadura, navegou uma série de estruturas opressoras e que podiam colocar a vida dela, de seus amigos e de sua família em risco, para conseguir avançar as pautas da população negra no Brasil”, defende a neta de Iracema.
Independentemente de seu alinhamento, Iracema também sofreu as consequências da vida sob a ditadura, observa Domingues.
Convite para confraternização de fim de ano do GTPLUN, parte dos arquivos do Deops sobre o grupo, hoje disponíveis no Arquivo Público do Estado de São Paulo
Reprodução/Apesp
Em 1977, por exemplo, o GTPLUN iria receber uma verba de US$ 40 mil da Fundação Interamericana (IAF, na sigla em inglês), órgão financiado pelo governo dos EUA, para aquisição de uma sede permanente.
Mas a doação foi barrada e as atividades do IAF foram suspensas no Brasil pelo governo de Ernesto Geisel (1907-1996), pois, ao fazer a doação, a fundação reconhecia a existência de um “problema racial” no Brasil, o que era rechaçado pelos militares.
Cassie Osei, da Bucknell University, observa ainda que o GTPLUN, como outros grupos ativistas negros da época, foi vigiado pela ditadura.
Isso fica evidente pelo fato de o estudo de Domingues ser baseado principalmente em documentos produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo, polícia política do regime, disponibilizados atualmente para consulta pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp).
“Para a ditadura, o movimento negro tinha potencial subversivo, porque atentava contra o mito da ‘democracia racial’, que preconizava a ideia de que não existia racismo no Brasil”, explica Domingues, sobre a origem dos documentos que serviram de base para seu estudo.
“O temor era que os protestos e a radicalização que estavam acontecendo nos Estados Unidos [com o movimento de direitos civis] chegassem no Brasil. Esse era o grande temor: que os negros do Brasil se insurgissem, como estava acontecendo lá, daí a necessidade de policiar a movimentação desses militantes aqui.”
Anemia falciforme
Nos anos 1980, Iracema de Almeida se dedica a um outro projeto: o estudo da anemia falciforme.
Predominante entre indivíduos negros, a doença atinge cerca de 8% da população negra no Brasil, segundo dado do Ministério da Saúde de 2021.
Hereditária, a doença falciforme se caracteriza pela mudança na estrutura dos glóbulos vermelhos, que assumem formato de foice ou meia lua. Com isso, há dificuldade no transporte de oxigênio entre as células.
O fenômeno provoca anemia e outros sintomas que vão desde dores nos ossos e nas articulações, até infecções e atraso no desenvolvimento.
“Então eu falei: mas eu preciso saber como fazer com a anemia falciforme. Eu não sei o que vou fazer com essa anemia falciforme. Então, vou estudar. Estudei”, contou Iracema em uma entrevista feita em 1990, quando ela já estava com 70 anos.
“Fiz a localização aqui nas Américas. Na América do Norte [encontrei] muito, e isso eu senti quando estive lá. Queria sentir um lugar mais perto: Caribe. Depois fui para a Jamaica sozinha. Sozinha e com o meu dinheiro”, acrescentou a médica.
Prospecto de palestra sobre ‘Detecção de anemia falciforme em pacientes’, com a participação de Iracema de Almeida, creditada como ‘pesquisadora de anemia falciforme no Brasil, África, Jamaica, Caribe e Barbados’
Arquivo pessoal/Raphaella Reis
“Na época em que ela começou a pesquisa, aqui [no Brasil] não tinha nem diagnóstico, nem tratamento. Então ela viajou para outros lugares que já tinham isso”, conta Raphaella.
“O objetivo dela era trazer esse conhecimento para cá, para o Inamps [Instituto de Assistência Médica da Previdência Social], porque na época não existia nem SUS [Sistema Único de Saúde]. E fazer capacitação de clínicos gerais para exames clínicos, para identificar os sinais básicos da anemia falciforme”, conta a advogada.
Como trata-se de uma condição de saúde que afeta mais a população negra, ninguém ligava para essa doença, diz a neta de Iracema. E os sintomas — como dor, fraqueza, cansaço — eram muitas vezes considerados “frescura” ou “coisa de gente preguiçosa”.
“Então ela foi viajar para basicamente trazer a noção da existência da anemia falciforme para a comunidade médica: como diagnosticar, como tratar, o que observar. Então o protocolo básico, foi ela que trouxe [para o Brasil].”
Memória e esquecimento
Apesar de todos esses feitos, a história de Iracema de Almeida é hoje pouco conhecida.
Em 2005, pouco depois de sua morte, a médica foi homenageada postumamente pela então Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir), à época sob o comando da ministra Matilde Ribeiro.
“É importante que minha avó seja lembrada, porque sua história caiu no esquecimento. Apesar de ter dedicado sua vida à saúde e valorização da cultura e da história negra”, disse Raphaella Reis à época da homenagem.
Falecida em 2004, Iracema deixou um filho, Anselmo (também já falecido, em 2012), e quatro netas: Raphaella, Gabriella, Larissa e uma caçula que Raphaella não conhece
Arquivo pessoal/Raphaella Reis
No ano passado, o nome de Iracema chegou a ser cotado entre personalidades negras que poderiam ser homenageadas com estátuas em espaços públicos, a serem instaladas pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Mas, numa escolha feita através de consulta pública, venceram a ialorixá Mãe Sylvia de Oxalá, a cantora Elza Soares, o soldado Chaguinhas (líder de uma revolta contra atrasos de salários), a intelectual e ativista Lélia Gonzalez e o geógrafo Milton Santos, informou a Secretaria Municipal de Cultura à BBC News Brasil.
A instalação dessas estátuas está em fase de estudo dos locais de instalação e o próximo passo serão as contratações, disse a pasta.
Em seu estudo, o historiador Rafael Trapp avalia que parte do ostracismo que cerca a história do GTPLUN talvez se deva às “suas ligações com o controverso mundo da política nos anos 1970” – isto é, ao suposto alinhamento do grupo ao regime militar.
“Hoje eu relativizo aquilo que coloquei lá, pois me parece que a doutora Iracema, assim como seus companheiros do GTPLUN, estavam jogando o jogo político que era possível e que estava ao alcance daquelas pessoas no contexto de classe específico em que eles se encontravam”, afirma Trapp.
“Então eles se utilizavam de sua posição de classe para, a partir disso, tensionar de forma direta e indireta a estrutura social racista do Brasil.”
Cassie Osei, por sua vez, vê outros dois possíveis motivos por trás do “esquecimento” de Iracema de Almeida.
O primeiro, diz ela, é que a médica era de uma geração mais velha do que os líderes do MNU, movimento que é mais lembrado quando se pensa na mobilização negra no Brasil dos anos 1970. O outro motivo, na visão da historiadora, é o machismo.
Ela observa, por exemplo, que Iracema é muitas vezes descrita dentro do próprio movimento negro como uma pessoa “complicada” ou “controversa”, com quem era difícil de trabalhar e que frequentemente entrava em conflito com outras pessoas.
“Iracema foi punida por não personificar o que era esperado de uma mulher negra. Embora o feminismo negro desponte no Brasil naquela mesma época, figuras como Lélia Gonzalez tinham o respaldo, por exemplo, de Abdias Nascimento e de outros homens dentro do movimento negro, enquanto Iracema de Almeida não tinha um fiador masculino”, diz a historiadora americana.
Autor de um dos poucos artigos acadêmicos sobre o GTPLUN, Petrônio Domingues destaca que ainda não há nenhum estudo de fôlego sobre a vida de Iracema de Almeida.
“A doutora Iracema é um ponto fora da curva em termos de protagonismo negro em São Paulo e no Brasil. É um caso a ser estudado”, diz o historiador.
“Na atual fase, em que a luta do movimento de mulheres negras e as feministas negras estão pautando o debate da agenda nacional, é preciso urgentemente conheceremos melhor a origem dessas mulheres, que a partir de seu protagonismo ocuparam a esfera pública e, de uma maneira muito ousada para a época, defenderam seus ideais e buscaram defender a luta antirracista.”
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Fonte: G1 Read More