Fernando Venâncio, autor do livro ‘Assim Nasceu uma Língua’, afirma que ‘não há maneira de retroceder, não há maneira de travar esse processo de afastamento entre o português e o brasileiro’. Painel no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, mostra os locais onde se fala português no mundo
Guilherme Sai/Museu da Língua Portuguesa
A língua de Portugal não nasceu exatamente em Portugal. E o Brasil, a principal ex-colônia portuguesa, fala um idioma que cada vez mais se modifica e será chamado em um futuro breve de “brasileiro”, e não mais de “língua portuguesa”.
São visões que talvez mexam com o orgulho do lusitano, o povo que construiu o primeiro Estado moderno europeu e deixou nos continentes americano, africano e asiático marcas profundas de sua cultura (e também da dominação pela força).
Os 10 erros de português mais cometidos pelos brasileiros
Exposição do Museu da Língua Portuguesa conta como português do Brasil também ‘é feito’ de palavras de origem africana
O defensor dessas visões, porém, é justamente um português: o linguista Fernando Venâncio. Ele teve publicado recentemente no Brasil o livro Assim Nasceu uma Língua (editora Tinta da China).
Venâncio argumenta — apoiado em diversos estudos acadêmicos e registros históricos — que o idioma português nasceu em um território do qual somente uma parte é atualmente Portugal: o Reino da Galiza, fundado no século 5 d.C., após a dissolução do Império Romano.
“A simples ideia de que, algum dia, um idioma estrangeiro possa ter sido a língua de Portugal é-nos insuportável”, escreve o linguista.
Para se ter uma ideia, Lisboa, atual centro da vida portuguesa, levou mais 700 anos sob outro domínio: o dos árabes que ocuparam a Península Ibérica.
Até então, Lisboa (e grande parte da península) falava moçárabe — uma variedade de dialetos de origem latina com influência do árabe, que era padrão na vida institucional da época e legou palavras como “almofada”, “açougue” e até “fulano”. No decorrer desse tempo, a língua galega já tomava forma.
A parte principal do antigo Reino da Galiza é atualmente a Galícia, comunidade autônoma da Espanha conhecida por cidades como A Coruña, Vigo e Santiago de Compostela (esta considerada “berço simbólico” da língua galega).
Reino da Galiza ocupava terras hoje de Portugal e da Espanha
BBC
Movimentos locais tentam hoje em dia valorizar o uso do galego, que sofreu um processo de apagamento e desprezo tanto por portugueses quanto por espanhóis. O castelhano tem larga preferência no dia a dia da Galícia, principalmente nas grandes cidades.
“Há galegos que fazem o possível para inverter o processo, mas é muito difícil porque é o castelhano que tem prestígio”, diz Venâncio à BBC News Brasil.
“É em castelhano que se cantam as canções mais correntes diárias da própria Espanha. O galego é visto como uma língua rural, uma língua de aldeão.”
Um exemplo dessa tensão está na produção espanhola Mar Adentro (2004), estrelada por Javier Bardem e vencedora do Oscar de melhor filme internacional. É passada na Galícia agrária, rústica e tem diálogos em galego.
O idioma não tem na Espanha o mesmo prestígio e adesão do catalão, falado como primeira língua por parte considerável da população de Barcelona e que é expressão das aspirações de independência da Catalunha em relação a Madri.
Já a razão para a dissipação histórica das raízes galegas na língua portuguesa está justamente, explica Venâncio, na construção da identidade nacional de Portugal — fundado como reino no ano de 1139.
Os portugueses precisavam cultivar uma narrativa de unidade e de diferença em relação a outras regiões. Assim, as pegadas originalmente vindas da Galícia, um reino que cairia sob a esfera de Castela nos séculos seguintes, foram sendo apagadas.
Segundo o linguista, a própria ideia do “galego-português”, termo que costuma designar uma forma antiga do português, estudado em livros escolares brasileiros por meio das obras de Gil Vicente (dramaturgo dos séculos 15 e 16, autor do Auto da Barca do Inferno), é um exemplo de disfarçar essas raízes.
A língua portuguesa nasceu simplesmente galega, sustenta Venâncio, e depois foi sendo transmitida para a parte sul do reino, ganhando seus contornos próprios, hoje distintos das suas origens — embora o português siga mais próximo do galego do que do castelhano.
Por sinal, a clássica idealização de que a palavra saudade só existe na língua portuguesa cai por terra em uma simples consulta a um dicionário de galego.
‘Inho’ e ‘oxente’: heranças galegas?
Um mergulho nas características desse idioma indica que até “marcas registradas” do Brasil têm origem no galego.
O diminutivo -inho, de cafezinho ou Ronaldinho, é frequentemente associado a um traço da afetividade e da cordialidade brasileira.
Mas esse elemento, afirma Venâncio, é uma criação da língua galega, que passou pelo seu processo de formação, como visto, bem antes dos 1500 da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.
Já a origem da mais famosa expressão nordestina, oxente, “podemos dizer sossegadamente que é de influência galega”, diz o linguista.
Não há um registro definitivo do surgimento de oxente no linguajar nordestino.
Na internet, até se encontra a tese de que é uma derivação da expressão do inglês “oh shit” (“que m…”, em tradução livre), que teria chegado com militares americanos estacionados no Nordeste brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial.
As evidências, no entanto, apontam para o noroeste da Península Ibérica.
“Xente” (gente) é uma palavra galega. O fonema do X no lugar dos sons de G e J no português, aliás, é um dos traços mais marcantes da língua galega (José vira Xosé na Galícia, por exemplo).
Não se pode ignorar que o termo “galego” — um povo com a genética norte-europeia dos celtas — seja usado amplamente no Nordeste brasileiro para designar “pessoa loira”. A região, de fato, chegou a receber imigrantes oriundos da Galícia.
O linguista Fernando Venâncio, autor de ‘Assim Nasceu uma Língua’
Divulgação
‘Língua brasileira’
Apesar de seus 79 anos e décadas de estudo (e ensinamento em universidades holandesas) da língua portuguesa, Venâncio está longe de ser um purista.
Ele diz que não vê “como tragédia e nem sequer como um drama” a entrada de termos brasileiros — como “geladeira” — na fala de crianças portuguesas.
“O exemplo que normalmente se dá é, em vez de frigorífico, dizer geladeira. Portanto, podemos admitir que uma criança chega ao pé da mãe e pergunte ‘posso tirar isto ou aquilo da geladeira?’ A criança não está a falar brasileiro, está a falar um pouco à brasileira e, na vida real, isso não tem importância. Mas é um fato que esse processo se dá”, diz Venâncio.
Mesmo com a influência do linguajar brasileiro sobre a população portuguesa, o linguista considera que está em curso um processo de separação entre as duas variantes, e não de união.
“Não há maneira de retroceder, não há maneira de travar esse processo de afastamento entre o português e o brasileiro”, diz Venâncio, que já pensa intuitivamente na variante como um idioma à parte.
“O brasileiro é uma língua magnífica. Desculpe: é uma norma [variante] magnífica”, corrige-se.
“Bem, é possível que você ainda viva quando se formar uma língua brasileira, o que, digamos, não será o meu caso.”
Mas, nos dois lados do Oceano Atlântico, linguistas e gramáticos argumentam que ainda há unidade em normas e usos linguísticos das duas variantes, que morfemas (artigos, preposições, pronomes, entre outros) permanecem os mesmos e que o português culto do Brasil é quase igual ao português culto de Portugal.
Esses elementos impediriam a afirmação de que há uma “língua brasileira”.
Venâncio não entra nestas questões técnicas. Diz, no entanto, que a linguagem brasileira que chama de “espontânea”, mais distante da norma culta tradicional, está aos poucos separando a nossa variante do português europeu.
“Isso é uma maneira de medir [o processo de separação]. E é uma maneira também de colocar a questão. O falante culto brasileiro também fala de uma maneira mais espontânea, de uma maneira mais ‘diária’, e esse processo vai ser cada vez mais acelerado”, afirma.
“E sabemos que nos processos de mudanças da língua há sempre esses momentos de aceleração. Vai dar-se um afastamento do português europeu. Não sabemos quando é que será. Só sabemos dizer que isso é inevitável.”
O linguista tenta resolver a questão ao concluir Assim Nasceu uma Língua afirmando: “O português promete, pois, dividir-se — ou multiplicar-se — em outros idiomas, tal como um dia aconteceu à língua dos romanos, que, por eles, não tinham destas andanças da história a mínima ideia. Sabermos isso faz-nos, a nós, mais felizes? É o mais certo”.
Fonte: G1 Read More