Após idas e vindas, a reforma do ensino médio não voltou a tornar o ensino de espanhol obrigatório no Brasil, ainda que o país seja vizinho de nações de língua espanhola. Brasil está rodeado de países que falam espanhol.
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Quando ouviu os versos da música Soy loco por ti, America, na voz de Caetano Veloso, em 1968, a então estudante de letras Márcia Paraquett concluiu que precisava aprender espanhol.
“Naquela época, quase não havia professores de língua espanhola, não tinha mercado, interesse, nada”, lembra a hoje professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Em 2005, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, quando foi aprovada e sancionada a lei que tornou obrigatório o ensino do espanhol no ensino médio, Paraquett, que então ensinava o idioma há três décadas, achou que esse “vazio” estava definitivamente preenchido.
Mas o cenário em 2024 não é animador para os professores de espanhol que o país formou, segundo Paraquett e outros entrevistados pela BBC News Brasil.
“Há um desânimo total”, diz a também professora Mônica Nariño, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O primeiro baque veio em 2017, com a revogação da Lei do Espanhol de 2005 na reforma do ensino médio do governo Temer.
Agora, no terceiro governo Lula, o projeto de reforma do ensino médio que saiu do Ministério da Educação em 2023 previa a volta da obrigatoriedade do Espanhol.
A demanda foi então retirada do projeto pela Câmara, recolocada pelo Senado e, finalmente, retirada definitivamente pelos deputados, em um acordo costurado com o governo para aprovação da reforma em julho.
A decisão também foi tomada em meio a uma disputa diplomática entre países onde se fala outros idiomas, contrários à obrigatoriedade, e outros onde o espanhol é a língua corrente (leia mais abaixo). O projeto agora aguarda a sanção presidencial.
Tanto em 2017 quanto neste ano, o principal articulador contra a obrigatoriedade do espanhol foi o deputado federal Mendonça Filho (União-PE), ex-ministro da Educação de Temer e relator da reforma do ensino médio na Câmara.
“Insisti na retirada porque entendo que, para você alcançar a aprendizagem, você precisa ter foco em um currículo bem definido”, disse Mendonça Filho à BBC News Brasil, citando o desempenho insatisfatório dos alunos brasileiros em “componentes curriculares essenciais para a formação humana, como Matemática e Português”.
Para o deputado, com a carga horária atual dos estudantes, tornar uma nova disciplina obrigatória tiraria espaço de outras matérias ditas mais “importantes”. “Se alguma coisa entra, outra perde”, justifica Mendonça Filho.
Professores da disciplina argumentam que o ensino do espanhol atenderia a uma demanda de alunos que veem no idioma, mais semelhante ao português, uma entrada para o mundo das línguas estrangeiras, além de aprofundar relações com os países vizinhos.
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Embate diplomático
A discussão sobre a retomada do Espanhol como matéria obrigatória no país também movimentou o Setor de Embaixadas, em Brasília.
As equipes diplomáticas da França, Itália e Alemanha atuaram com os deputados para o convencimento da retirada da obrigatoriedade, confirma Mendonça Filho.
“Defenderam a liberdade de a segunda língua estrangeira ser uma escolha”, diz Mendonça Filho.
À emissora CNN Brasil, as embaixadas chegaram a confirmar os contatos com os deputados.
“Uma determinação do governo para o ensino médio seria catastrófica para as outras línguas. Somos a favor do plurilinguismo”, afirmou uma funcionária da embaixada francesa.
A BBC News Brasil entrou em contato com as três embaixadas, que não responderam aos questionamentos sobre a tentativa de influenciar essa decisão.
Parlamentares do PSOL chegaram a enviar um documento cobrando o Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, para apurar a atuação destes países por meio de suas embaixadas.
Do outro lado, as embaixadas dos países latino-americanos e da Espanha também se reuniram com os congressistas para insistir na inclusão do Espanhol.
O gabinete da senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), a relatora do projeto no Senado que incluiu no texto a volta da obrigatoriedade, confirmou à reportagem que recebeu representantes de países vizinhos do Brasil.
O principal argumento colocado na mesa é a integração latino-americana, já que quase todos os países da região falam espanhol.
As exceções em outros países da América do Sul são a Guiana, onde predomina o inglês, o Suriname, onde se fala holandês, e a Guiana Francesa, onde o idioma oficial é o francês.
Mendonça Filho disse que recebeu mais de dez embaixadores de países da América Latina, mas não se convenceu.
“Perguntei aos representantes: ‘Quantos de vocês ensinam Português como segunda língua estrangeira nas escolas?'”, lembra. “Nem Portugal, que é vizinho da Espanha, obriga o ensino de espanhol.”
No Uruguai, segundo o Departamento de Segunda Língua do país, 93 escolas ensinam português, a maioria na região fronteiriça.
O deputado argumenta que é o Inglês que precisa ser obrigatório, porque é a “língua universal”, usada no mercado internacional.
É a mesma posição defendida pela ONG Todos Pela Educação, que participa ativamente de discussões sobre políticas públicas do setor no Brasil.
“A nossa visão é, considerando o inglês como a língua principal para internacionalização do país, tem que ser uma língua obrigatória”, diz Gabriel Corrêa, diretor de políticas públicas da organização.
“O espanhol precisa ser promovido, mas de forma optativa no território nacional. Em alguns lugares, precisa ser obrigatório, especialmente na fronteira. Mas em outros, não.”
Para Monica Nariño, criadora do movimento Fica Espanhol, que tem o objetivo de pressionar os legisladores pela obrigatoriedade do ensino de espanhol, a decisão tomada com a reforma do ensino médio faz o Brasil perder força na integração regional.
“É sobre a nossa cultura latino-americana, não é só sobre a economia”, diz a uruguaia radicada em Porto Alegre.
Nariño se diz decepcionada com o governo Lula, que chegou a um acordo no texto final relatado por Mendonça sem o espanhol.
Em nota à BBC News Brasil, o Ministério da Educação (MEC) informou que o projeto original enviado, que previa a obrigatoriedade do Espanhol, dialogava “com diferentes interesses expressos na sociedade brasileira, como, por exemplo, a integração regional com outros países latino-americanos, a inserção internacional do Brasil e os laços culturais e históricos que unem o mundo ibero-americano”.
“Embora haja, por parte do Ministério da Educação, a compreensão de que a obrigatoriedade do ensino de língua espanhola seja importante para o país e embora essa tenha sido uma proposta que apresentamos no projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional, reconhecemos que o Parlamento tomou outra [decisão]”, diz ainda a nota do MEC.
Para Mendonça Filho, “quem assumiu o ônus (da retirada do Espanhol) fui eu, mas prestei um bom serviço ao MEC e à educação brasileira.”
O MEC informou ainda que não foi procurado por embaixadas estrangeiras.
Queda de braço histórica
O cenário em 2005, quando o Congresso brasileiro aprovou a obrigatoriedade do ensino de espanhol, era muito favorável para que isso acontecesse.
O Mercosul, a união aduaneira e de integração criada por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai em 1991, se estruturava, em meio à relação amistosa do governo Lula com os líderes de países vizinhos.
O sociolinguista espanhol Francisco Moreno Fernández, no livro O ensino do Espanhol no Brasil (Editora Parábola, 2012), ressalta a euforia no início dos anos 2000 com o Mercosul, o mercado trazido por grandes empresas espanholas no Brasil, como a Telefónica e o Banco Santander, e o sucesso da cultura dos países de língua espanhola.
“A proximidade das línguas espanhola e portuguesa faz com que se sinta a cultura em espanhol como algo afim, e, até certo ponto, próprio, e fomenta a atitude favorável dos brasileiros à cultura hispânica”, escreveu Fernández.
Na época, após a aprovação, o presidente Lula chegou a dizer que “as gerações futuras de brasileiros terão o espanhol como segunda língua, assim como terão a América do Sul como nossa segunda pátria”.
“Esperamos que, crescentemente, o português também venha a ser lecionado nos outros países sul-americanos”, disse Lula.
A lei dizia que o ensino da língua espanhola era de oferta obrigatória pela escola e de matrícula facultativa para o aluno. Ou seja, o aluno poderia escolher se faria a aula, mas o colégio era obrigado a disponibilizar a disciplina. Os Estados teriam 5 anos para implementar isso.
“Nessa época, o interesse pela língua aumentou imensamente”, lembra a professora Marcia Paraquett, da UFBA.
“Os brasileiros percebiam cada vez mais a cultura muito rica envolvendo a língua espanhola, na música, no cinema. E também a possibilidade que não só rico podia aprender uma língua estrangeria.”
Apesar da obrigatoriedade na lei, reportagens na imprensa nos anos seguintes mostraram como, na prática, os alunos enfrentavam dificuldades para fazer aulas de espanhol.
A forma de ofertar o idioma dependia dos Estados. Alguns ofereciam em centros de estudo específicos, outros sequer tinham um plano para implementação.
Mesmo com essas dificuldades, novos cursos de letras com especialização em espanhol se espalharam no Brasil e novos professores foram formados. A língua também passou a ganhar espaço nos vestibulares.
“A lei movimentou o ensino do espanhol no Brasil, mobilizou muitos cursos superiores de formação de professor de espanhol, mobilizou estudantes para trabalhar com a língua, hoje temos muito profissionais qualificados”, diz Luisa Hidalgo, doutoranda em letras que pesquisa o ensino de espanhol na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Na visão de Gabriel Corrêa, da Todos Pela Educação, apesar dos avanços, ainda hoje faltam professores de espanhol em algumas regiões do Brasil: “Temos falta de professores até de outras disciplinas”.
A situação era essa até 2017, quando o governo Temer elaborou uma primeira reforma do ensino médio.
A partir dali, ficou definido que a língua obrigatória seria apenas o inglês. O espanhol tornou-se “preferencial”, caso houvesse o ensino de uma segunda língua em uma escola.
Para Mendonça Filho, então ministro da Educação, a Lei do Espanhol, de 2005, não mudou a “realidade” nas salas de aula, e, na prática, os alunos continuavam sem aprender a língua.
Foi nessa época que a professora Monica Nariño fundou com colegas no Rio Grande do Sul o movimento Fica Espanhol.
A ideia seria, na esteira da revogação, pressionar os congressistas e munir de informações movimentos estaduais que quisessem aprovar leis locais.
No Rio Grande do Sul, que faz fronteira com Argentina e Uruguai, uma proposta alterou a lei estadual e instituiu a obrigatoriedade do Espanhol.
Uma iniciativa semelhante está em tramitação em São Paulo, enquanto na Paraíba e no Paraná leis já foram aprovadas, mas não plenamente implementadas.
Nariño, que desde então mantém contato com deputados que se interessam pelo tema, diz que percebe uma aversão de políticos ligados à direita ao espanhol, por ser associado a “países socialistas e comunistas, como Cuba e Venezuela”.
Mendonça Filho nega ter preconceito com o idioma ou qualquer outro.
“A gente tem uma presença de colônias de italianos e alemães no Sul. Se eles quiserem ofertar outro idioma que não o espanhol, eles têm que ter a liberdade”, diz o deputado. “Os Estados precisam ter autonomia.”
Outro argumento dos professores de Espanhol é a quantidade de estudantes que escolhem a língua como opção no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Segundo dados enviados à BBC News Brasil sobre os últimos cinco anos do exame pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela elaboração do Enem, o Espanhol foi escolhido pela maioria dos estudantes até 2020.
De lá pra cá, o inglês passou na frente. Na edição 2023 da prova, 43% escolheram Espanhol e 57%, o Inglês.
“Se você incentiva a aprendizagem de uma língua como o espanhol, que tem o interesse dos alunos, você facilita até a aprendizagem do português. Quanto mais você lê, mais você aprende”, diz Nariño.
Mas Gabriel Corrêa diz que “a grande maioria dos estudantes escolhem o espanhol não porque têm uma baita proficiência”, mas porque “não sabem nenhuma das duas línguas”, e o espanhol acaba sendo mais “fácil”.
Ele defende que o Brasil precisa investir na expansão do regime integral nas escolas para que, com mais tempo de classe, o aluno possa fazer mais aulas de uma língua estrangeira.
Os professores de espanhol com quem a BBC News Brasil conversou avaliam que, mesmo que os alunos não saiam do ensino médio sabendo bem o espanhol, a prova da língua no Enem permite que alunos de escola pública tenham alguma competitividade com seus pares que fazem intercâmbios e cursinhos, sabendo responder algumas questões.
Tirar essa possibilidade, em sua visão, aumentaria a desigualdade.
O MEC informou que manterá “a língua espanhola como opção para prova de língua estrangeira no Enem” e disse estar “estruturando, com as equipes técnicas, uma estratégia nacional para fomentar o ensino de línguas estrangeiras de forma complementar ao ensino regular”.
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Reprodução/RBS TV
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Não é de hoje que o ensino de espanhol permeia o sistema educacional do Brasil.
O ponto inicial para ensino de espanhol no país é atribuído por pesquisadores ao Colégio Pedro 2º, uma instituição federal de ensino público do Rio de Janeiro.
Foi em 1919, em um ato de reciprocidade ao Uruguai, que havia oferecido aulas de Português numa escola de Montevidéu. Mas o ensino no Rio não vingou e foi deixado de lado.
Foi só em 1942, no governo Getúlio Vargas, que o então de ministro da Educação, Gustavo Capanema, estabeleceu o ensino do espanhol nas séries do ginásio e o científico (antigo ensino médio), sem obrigação.
Segundo a portaria da época, o ensino do espanhol mostraria “a origem românica, como a do português, que tem a língua de Castela e da maioria dos países americanos, o que o ajudará a compreender os seus sentimentos panamericanos”.
A origem do panamericanismo remonta ao século 19, quando líderes como Simón Bolívar e José de San Martín lutaram pela independência das colônias espanholas na América Latina.
Em 1956, o presidente Juscelino Kubitscheck solicitou ao Congresso nacional a elaboração de um projeto de lei para a inclusão do espanhol na grade curricular das escolas, argumentando que um “maior estreitamento dos povos do continente americano reclama, no entanto, um estudo mais intenso do idioma espanhol”.
De acordo com pesquisadores, porém, o projeto na época não foi adiante e incluiu “interferências político-culturais da Inglaterra e França”, que queriam estimular o ensino do inglês e do francês, respectivamente.
Em 1961, foi aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que define e regulariza a organização da educação brasileira com base nos princípios presentes na Constituição.
Os estabelecimentos de ensino poderiam a partir de então optar qual língua estrangeira. Dez anos mais tarde, a versão da LDB de 1971 retomou o assunto sugerindo o uso de “línguas modernas”, excluindo assim aulas de latim, por exemplo.
A professora Marcia Paraquett lembra que, nos anos 1960 e 1970, havia um interesse muito maior no Brasil por línguas como o francês e o italiano — e o espanhol seguia em segundo plano.
Em 1996, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, foi promulgada a nova LDB, que continuava estabelecendo a obrigatoriedade de ensino de uma língua estrangeira moderna no ensino fundamental a partir da 5ª série.
No ensino médio, uma língua estrangeira moderna deveria ser escolhida pela comunidade escolar, além de uma segunda optativa.
Finalmente, o estreitamento de laços com os países vizinhos estimulou a aprovação da Lei de Espanhol, de 2005, de autoria do então deputado Átila Lira (PSDB-PI), mais tarde revogada no governo Temer.
Segundo o novo texto de 2024, “os currículos do ensino médio poderão ofertar outras línguas estrangeiras, preferencialmente o espanhol, de acordo com a disponibilidade de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de ensino”.
Atualmente, tramita em regime de urgência na Câmara um novo projeto de lei, de autoria do deputado Felipe Carreras (PSB-PE), que pede novamente a obrigatoriedade do espanhol.
Fonte: G1 Read More