Vídeo de angolano citando exemplos de influências do quicongo, quimbundo e umbundo no português brasileiro viraliza nas redes sociais. Entenda como essa ‘mistura’ aconteceu na nossa história. Dengo, xingar, moleque…Palavras do nosso dia a dia vieram de línguas africanas
Dizem que os fãs brasileiros são os mais entusiasmados do mundo, e temos mais uma prova disso. Nem estamos falando de música ou de filmes, e sim de… linguística. Foi só o angolano Gio Cattuco postar um vídeo (assista acima) sobre as influências de línguas africanas no português brasileiro que, pronto, o material viralizou no TikTok.
“Meu deus, que incrível!”, “As nossas melhores palavras vieram da África!”, “Angola, OBG POR TUDOOOOO” (sim, com todas essas vogais mesmo, com bastante empolgação).
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Entre os termos falados no post, estão:
“dengo” – vem de “ndengu”, que significa “doçura, carinho e atenção” na língua quicongo, falada no norte de Angola e na República Democrática do Congo.
“babá”- originou-se do verbo “kubaba”, que, na língua quimbundo (uma das mais usadas em Angola), significa “acalentar ou embalar uma criança para dormir”;
“beleléu” – nasceu de “mbalale”, também na língua quimbundo, para representar “sepultura” ou “lugar onde se enterram as pessoas”.
Curiosidade: As vogais não são nasais. Em vez de falar “/dêngo/”, a pronúncia fica mais próxima de “/déngo/”.
Entenda, ao longo desta reportagem, os detalhes dessa “mistureba” de idiomas:
🌍Quando as palavras africanas chegaram ao Brasil? E de que forma?
⏳O sentido das palavras continuou o mesmo ao longo do tempo?
👅Afinal, que língua se fala em Angola?
📒Dá para ter certeza da origem de cada palavra?
📺Nós também influenciamos o vocabulário dos angolanos? Spoiler: sim! “Busão”, “sacanagem”…
➡️Antes de descobrir as respostas, responda ao quiz a seguir.
🌍Quando as palavras africanas chegaram ao Brasil? E de que forma?
A linguista Margarida Peter, professora da Universidade de São Paulo e uma das maiores pesquisadoras de línguas africanas do país, explica que tudo começou em 1538, quando os europeus trouxeram ao Brasil os primeiros escravos vindos da África.
“Eles chegaram aqui, saindo principalmente de Angola, e já entraram em contato com o português. Sabe quando você começa a aprender uma língua e acaba transferindo termos do seu idioma para poder se expressar? Foi o que naturalmente aconteceu”, explica.
Após o contato entre os povos, os africanos passaram a “misturar” suas línguas nativas — quicongo, quimbundo e umbundo — com o português.
🗣️As três pertencem à mesma família linguística, chamada de bantu. O português, o espanhol e o italiano, por exemplo, são de outra família: a latina. Línguas do mesmo grupo guardam similaridades entre si, mas continuam sendo idiomas diferentes e independentes.
O vocabulário africano foi sendo incorporado com o passar do tempo e com a intensificação do contato entre os povos, explica Cassiano Butti, lexicólogo e professor-doutor de língua portuguesa da PUC-SP.
“No começo, eram usadas palavras relacionadas ao que esses povos viam de novo aqui, como vegetações, animais, acidentes geográficos e práticas religiosas. Depois, principalmente no século XVIII e XIX, termos do cotidiano da matriz africana passaram a ser empregados, como canjica, caçula, cochilo, dendê, moleque e quitanda”, diz.
E não foi só o vocabulário que passou por essa mistura toda.
“Até a estrutura profunda do português brasileiro, como a sintaxe [a forma como organizamos as frases], recebeu influência africana”, afirma Cecília Farias, pesquisadora do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.
Sabe quando falamos algo como “A casa está reformando”? Não é a própria casa que está fazendo a reforma, claro, mas entendemos direitinho a frase, certo? No português europeu, por exemplo, isso não faria sentido.
“Essa estrutura sintática tem a ver com uma influência das línguas bantu aqui no Brasil”, explica Farias.
⏳O sentido das palavras continuou o mesmo ao longo do tempo?
Exposição do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, trata exatamente da influência de línguas africanas no português brasileiro
Divulgação
Não. Vamos analisar a palavra “dikamba”: “di” (prefixo que indica singular) + “kamba” (amigo), em quimbundo.
Quando o termo passou a ser usado no Brasil, já não significava mais “amigo”, e sim “cambada”, em um sentido de “grupo”.
A professora Margarida Peter dá mais um exemplo: muamba.
“Em Luanda [capital de Angola], significa um prato da culinária local, uma espécie de ensopado com vários ingredientes. Mas a análise da história da palavra mostra que muamba era um cesto em que se guardavam mercadorias. E atualmente, no Brasil, é uma mercadoria ilegal, contrabandeada. Os sentidos vão se modificando.”
👅Afinal, que língua se fala em Angola?
O idioma oficial de Angola é o português (o país foi colonizado por Portugal a partir de 1482).
Mas há outras línguas também usadas no território, como as já citadas umbundo (principalmente no centro-sul), quimbundo (centro-norte), quicongo (norte), além de fiote, chocué e cuanhama, por exemplo.
“Na capital, o português é mais falado. Mas fui a algumas aldeias a 300 km de Luanda, fora do centro urbano, e aí só encontrei pessoas falando quimbundo, por exemplo, e com bastante variação”, afirma Peter. “Estão tentando implementar o ensino dessas outras línguas nas escolas ou em cursos.”
➡️Curiosidade: Na forma padrão da língua e nas gramáticas usadas pelos colégios, é mais comum usar o português lusitano. Mas, na variante falada, no dia a dia dos angolanos, o que predomina é o português mais próximo do brasileiro.
“Nós, no Brasil, falamos ‘me fala’, ‘me conta’, com o pronome [me] no começo da frase. Dizemos ‘eu vi ele’ [em vez de ‘eu o vi’]. Em Angola, nas conversas informais, também é assim”, conta a professora da USP.
📒Dá para ter certeza da origem de cada palavra?
Não pense que é fácil encontrar a correta origem das palavras em uma simples busca na internet. Até mesmo em dicionários etimológicos, pode ser que você chegue a resultados como “origem indefinida”, “origem controversa”.
Um exemplo: no vídeo que viralizou, o angolano afirma que “capanga” vem de “kubanga”, que significa “lutar” em quimbundo. Outros estudiosos dirão que vem de “kappanga”, ou seja, “sovaco” (região do corpo na qual homens carregavam, escondidos, as bolsas que transportavam diamantes).
“É difícil usar um dicionário ou uma gramática para confrontar. Os primeiros registros são dos jesuítas que enviavam relatos para Portugal. Os linguistas foram encontrando, aos poucos, pistas para compreender as línguas africanas”, afirma Butti, da PUC-SP.
A primeira gramática em quimbundo, por exemplo, foi escrita em português pelo Padre Pedro Dias, no fim do século XVII, para jesuítas que estavam aprendendo o idioma africano.
Atualmente, embora os estudos de línguas africanas tenham avançado na América nas últimas décadas, ainda não é um tema que recebe a devida atenção da academia e da sociedade em geral, afirma Clarissa Lima, assessora pedagógica da Amplia e pós-graduada em relações étnico-raciais.
“Nas escolas, os africanos são reconhecidos como os povos escravizados. (…) Pouco se tem conhecimento da arte, da cultura e da influência deles na língua portuguesa falada no Brasil”, diz.
📺Nós também influenciamos o vocabulário dos angolanos?
Sim! Principalmente por causa do sucesso das novelas e das músicas brasileiras na África.
Segundo a pesquisa de Larissa Gama, em monografia apresentada à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, as seguintes palavras/expressões em português brasileiro são atualmente usadas em conversas informais de angolanos:
galera
busão
bagulho
dando duro
geladeira
cantada
capricho
gozar
calcinha
legal
apê
pegar
cara
brigar
boteco
bacana
ventar
sacanagem
pega leve
mané
Outros exemplos de palavras do português brasileiro que vieram de línguas africanas:
(Não vale colar! Só leia esta parte depois do quiz)
Bunda
Origem: “mbunda”
Língua: quimbundo
Sentido: “ânus, nádega, traseiro”
Minhoca
Origem: “nyoka”
Língua: quimbundo
Sentido: “vermes, anelídeos” (no plural)
Xingar
Origem: “xinga”
Língua: quimbundo
Sentido: “insultar”
Moleque
Origem: “muleke”
Língua: quimbundo
Sentido: “garoto”
Cambada
Origem: “dikamba”
Língua: quimbundo
Sentido: “amigo ou companheiro”
Capanga
Origem: “kubanga”
Língua: quimbundo
Sentido: “lutar”
Caçamba
Origem: “kisambu”
Língua: quimbundo
Sentido: “cesto grande”
Caçula
Origem: “kazuli”
Língua: quimbundo
Sentido: “o último da família”
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Fonte: G1 Read More