Existem técnicas tradicionais de ensino de ortografia que não são apenas ineficazes. Elas podem até ser prejudiciais. Como isso é possível? A apresentação de palavras com erros de ortografia dificulta o aprendizado. Na imagem, um menino escreve na lousa.
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Existem técnicas tradicionais de ensino de ortografia que não são apenas ineficazes. Elas podem até ser prejudiciais. Como isso é possível?
Um dos mecanismos utilizados pelo nosso cérebro para aprender a ler e escrever é o chamado “aprendizado estatístico” ou implícito.
Este tipo de aprendizado começa logo que nascemos. Ele se baseia na detecção de padrões regulares em acontecimentos verificados com frequência.
Resumidamente, nós armazenamos o que se apresenta de forma repetida porque nosso cérebro interpreta que isso é importante para nos adaptarmos adequadamente ao ambiente à nossa volta.
Aprender com as repetições
Quando aprendemos a ler e escrever, entra em operação o aprendizado estatístico.
🤔 Um exemplo: como podemos aprender que “hoje” se escreve com “h”?
Uma forma é observar a palavra repetidamente, para que o nosso cérebro possa armazená-la com a letra “h” correspondente. Mas o que aconteceria se a palavra “hoje” fosse, às vezes, apresentada com “h” e, em outras ocasiões, sem a sua letra inicial?
Neste caso, o mecanismo de busca de padrões regulares não funcionaria adequadamente, já que ele deixaria de encontrar essa regularidade.
Para um leitor que seja professor do Ensino Fundamental, pode parecer familiar a sensação de que, quando era mais jovem (antes de exercer a profissão), ele cometia menos erros de ortografia. E que, agora, depois de passar anos observando e corrigindo os erros dos seus alunos, às vezes ele é acometido pela dúvida ao escrever uma dada palavra com “ss” ou “ç”, ou se ela leva ou não “h”, quando antes a escrevia perfeitamente.
Isso ocorre porque o cérebro do professor já observou muitas vezes palavras escritas de forma errada – como “giboia”, por exemplo. Isso faz com que ele passe a ter dúvida se deve escrevê-la com “g” ou com “j”.
Especialistas defendem que o ditado é uma prática pouco eficaz para o ensino da ortografia. Na imagem, alunos fazem atividade na escola.
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O problema dos exemplos errados
Uma atividade muito frequente no Ensino Fundamental, em relação à ortografia, é pedir ao aluno que detecte e corrija palavras escritas com erros ortográficos. Nela, o estudante observa uma frase como, por exemplo:
“O aluno pediu para mudar de acento porque não conseguia enchergar a louza” – o coreto é assento e lousa.
Neste caso, a apresentação das palavras com grafia incorreta dificulta a detecção de padrões regulares, impedindo sua observação e armazenamento. Em outras palavras, ela prejudica o aprendizado.
Se, cada vez que observarmos uma palavra específica escrita corretamente, imaginarmos que estamos subindo um degrau para armazenar definitivamente sua forma correta no nosso cérebro, observar a mesma palavra com a grafia fora do padrão nos faz descer vários degraus.
Existem outros exercícios no ensino da ortografia que também podem ser considerados prejudiciais.
Explicar as regras de ortografia reforça o aprendizado das palavras escritas corretamente. Na imagem, uma professora dá aulas de espanhol.
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O problema do ditado
A atividade mais tradicional e de maior uso no dia a dia das escolas talvez seja o ditado. Todos nós fizemos ditado ao longo da nossa vida escolar e, neste exato momento, certamente muitos estudantes estão fazendo este exercício.
Além da sua alta exigência cognitiva e da grande dificuldade de atender à diversidade em sala de aula, é preciso acrescentar uma limitação fundamental: o ditado é uma atividade de avaliação e não de ensinamento.
Se o estudante conhecer bem as palavras que estão sendo ditadas, ele irá escrevê-las corretamente. Mas, se elas não estiverem previamente armazenadas, o ditado não irá servir para fixá-las na memória. É uma atividade didática pouco eficaz.
Quando empregamos o ditado (na sua versão tradicional, em que o docente lê em voz alta um texto que ainda não havia sido apresentado aos estudantes), não estamos ensinando ortografia. Estamos apenas avaliando o conhecimento ortográfico dos alunos.
E, na escola, devemos tentar ensinar muito e avaliar pouco, não o contrário.
Estratégias eficazes
É preciso recordar que o nosso cérebro não entende a ortografia, mas apenas o que é repetido com frequência.
Por isso, a premissa do ensino da ortografia é oferecer às crianças exemplos corretos das palavras que elas precisam aprender.
Além disso, é necessário apresentar esses exemplos de forma repetida, para estimular, potencializar e facilitar o desenvolvimento adequado dos processos de aprendizado estatístico.
Neste sentido, é importante garantir apresentações repetidas das palavras mais complexas do ponto de vista ortográfico, ou seja, palavras que o estudante precisa empregar muito no seu dia a dia, mas que possuem ortografia complexa.
Um exemplo de paradigma é o verbo “haver” – e sua semelhança com o parônimo “a ver”, que tanta dor de cabeça costuma causar entre os estudantes.
Uma atividade bastante fácil de ser aplicada é a chamada “caixa de palavras”. Esta técnica consiste em criar uma caixa, na qual os alunos vão incluindo palavras difíceis, cada uma em um cartão separado.
Assim, eles terão essas palavras sempre acessíveis e poderão observá-las com frequência. E, quando os alunos as escreverem corretamente, poderão retirá-las da caixa, abrindo espaço para aprender novas palavras.
No caso de expressões homófonas, como “haver” e “a ver”, podemos acrescentar esta informação ao cartão, ou qualquer outro dado que considerarmos estimulante para o aprendizado profundo, como eventuais regras que facilitem a memorização ou palavras derivadas que mantêm ou não aquela complexidade ortográfica.
A “caixa de palavras” é uma boa estratégia para superar dificuldades de ortografia.
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Separar a ortografia das demais habilidades
É importante sermos específicos, abordando a ortografia de forma independente do restante das habilidades de escrita.
Quando nosso foco for colocar ideias em ordem, usar conectores ou revisar textos, é recomendável deixar a ortografia de lado. Se quisermos que os estudantes melhorem sua gramática, sintaxe, planejamento e ortografia ao mesmo tempo, muito provavelmente não conseguiremos aperfeiçoar nenhum destes aspectos.
Por isso, se o nosso objetivo for a ortografia, vamos nos concentrar unicamente nela.
Neste sentido, complementando a apresentação correta e frequente das palavras impulsionadas pelo aprendizado estatístico, também é benéfico ensinar explicitamente as regras ortográficas (“os prefixos ‘pós’, ‘pré’ e ‘pró’ exigem hífen”, por exemplo). Este é um exemplo de prática tradicional recomendável.
Uma alternativa ao ditado tradicional é a “cópia diferida”. Ela consiste em apresentar aos alunos uma frase que contenha dificuldades ortográficas e explicá-las, pedindo em seguida que eles escrevam aquela frase.
Cada complexidade ortográfica escrita corretamente é reforçada com pontos e os alunos têm a oportunidade de voltar a escrevê-la, se desejarem obter a pontuação máxima.
Minimizar a possibilidade de erro
A leitura pode melhorar a ortografia, exatamente porque ela nos expõe a muitas palavras de uso frequente, escritas corretamente.
Mas, com as palavras menos frequentes, é necessário reforçá-las com estratégias em sala de aula. Ler muito pode ser o melhor para escrever corretamente, mas os alunos mais jovens não tiveram tempo de leitura suficiente. Por isso, eles precisam de apoio e reforço durante as aulas.
Por fim, precisamos considerar que, como explica a pesquisadora espanhola Mercedes Rueda, os professores deveriam minimizar a possibilidade de erros na escrita – e, se eles ocorrerem, oferecer retroalimentação imediata.
Não devemos esperar que a criança se engane, precisamos antecipá-la. Se uma criança perguntar “professor, ‘hiena’ tem ‘h’?”, não devemos responder “o que você acha? como parece melhor?”
O mais eficaz é responder claramente à pergunta, sem titubear, expondo a forma ortográfica correta da palavra. Devemos responder claramente: “sim, é com ‘h'”. E só.
* Gracia Jiménez Fernández é professora titular do Departamento de Psicologia Evolutiva e Educação da Universidade de Granada, na Espanha.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em espanhol.
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Fonte: G1 Read More