Lançado em 1940, o poema faz referência ao momento político no mundo e reforça o compromisso do autor com a realidade. Poeta Carlos Drummond de Andrade
Reprodução/ EPTV
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
É assim que começa o poema ‘Mãos dadas’, de Carlos Drummond de Andrade, que foi citado pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na quarta-feira (28).
Durante entrevista exclusiva para o Conexão GloboNews e publicada Blog da Daniela Lima, a ministra faz uma adaptação dos versos ao alertar sobre o motivo de ter buscado a aprovação de regras contra uso de inteligência artificial nas eleições.
“Estamos trabalhando no mundo de hoje. Então, o que posso lhe dizer, à maneira de [Carlos] Drummond, que disse: ‘Não serei o poeta de um mundo caduco’, é que também eu não serei juíza de um mundo caduco”.
A versão original do poema foi publicada em 1940, como parte do livro “Sentimento do mundo”. Mas, para Saulo Gomes Thimoteo, professor de Literaturas de Língua Portuguesa do campus Realeza (PR) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), a obra de Drummond permanece atual.
Segundo o professor, a obra do poeta é marcada por conflitos, seja dele consigo mesmo ou dele com o mundo. Neste caso, não é diferente, já que ele renega expectativas que possam ter sobre ele e se reafirma como um expectador da realidade.
Isso, segundo Thimoteo, é uma resposta direta ao momento político que o mundo vivia, diante do início da Segunda Guerra Mundial.
Era esperado que poetas escrevessem sobre mulheres, sobre amores ou paisagens, mas Drummond se nega a fazer isso. Ele deixa claro que sua matéria é o presente – presente esse que vê os regimes autoritários em ascensão, prestes a se consolidar –, e diz que não vai fugir ou ficar alheio a isso.
Para José Wellington Dias Soares, coordenador do curso de Letras da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (Feclesc) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), o livro de 1940 marca o início da segunda fase do trabalho de Drummond, “muito mais preocupada com as questões sociais.”
Em seu artigo “O particular e o universal na poética de Carlos Drummond de Andrade”, Soares considera que é a partir dessa obra que o poeta passa a refletir sobre o “destino do homem em face do mundo” e a questionar a existência humana.
Reflexão essa que ele quer manter no presente, já que se nega a ficar no passado (“mundo caduco”) ou idealizar o futuro (“mundo futuro”). E é no presente que ele percebe os companheiros introspectivos, “taciturnos”, mas esperançosos, e declara: “vamos de mãos dadas”.
O poema é curto, possui apenas duas estrofes, mas Saulo Thimoteo acredita que é do tamanho perfeito para Drummond deixar sua mensagem.
“Ele diz que não vai ser o que não é e não vai escrever sobre algo que não seja o presente, e ainda entende a importância do coletivo para aquele momento. E conclui o poema com a metáfora de que aquilo é o verdadeiro presente”, conclui o professor.
Abaixo, leia o poema:
Mãos dadas
(Carlos Drummond de Andrade)
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Fonte: G1 Read More