INSS e Receita Federal dizem que o procedimento de envio de informações das remunerações salariais, obrigatório há um ano, não tem sido feito por alguns órgãos públicos. Já o governo estadual diz que ‘não foi notificado pelo INSS sobre eventuais divergências no envio de dados dos segurados’. A professora Eliane Monteiro, ao fundo, observa enquanto entregador retira um dos móveis que ela precisou vender
Júlio César/TV Globo
A casa da professora Eliane de Assis Monteiro, na Zona Sul de São Paulo, ficou mais vazia na tarde da última quinta-feira (21), quando entregadores estiveram no local para retirar móveis que ela precisou vender para pagar as contas. Professora da rede estadual paulista desde 2015, ela está há mais de seis meses sem renda depois de descobrir um câncer de mama e precisar se afastar do trabalho para fazer o tratamento médico.
O plano, porém, era contar com o auxílio-doença do Instituto Nacional de Seguridade Social durante a licença de saúde, já que, todos os meses, sua contribuição ao INSS é descontada da folha de pagamento do governo estadual.
Ela solicitou o benefício ao órgão em fevereiro deste ano (quando o desconto no holerite foi de R$ 877,25), mas, apesar de ter tido a incapacidade de trabalhar atestada, o auxílio foi negado um mês depois.
Remuneração é de notificação obrigatória no eSocial, diz INSS
Procurado pela TV Globo, o INSS informou que a professora “teve um pedido de auxílio por incapacidade temporária negado por falta de comprovação de segurada, após a solicitação e cumprimento de exigência” e que, desde então, ela protocolou um recurso que está em avaliação, além de uma segunda solicitação de auxílio, também em avaliação.
De acordo com o órgão, os descontos previdenciários no salário de um contribuinte não aparecem no sistema caso o empregador não cumpra a obrigação de informar as remunerações no eSocial, da Receita Federal.
“Essas informações não vêm sendo corretamente fornecidas por alguns entes e a Superintendência Regional do INSS em São Paulo iniciou um trabalho no sentido de estabelecer tratativas com o Governo de Estado de São Paulo, com o objetivo de auxiliar com orientações quanto ao preenchimento do sistema”, informou o INSS.
A TV Globo procurou as secretarias de Comunicação, da Educação e da Fazenda de São Paulo para saber se o governo estadual está cumprindo com essas obrigações legais, vigentes há quase um ano.
Em nota, o governo afirmou que, “até o momento, não foi notificado pelo INSS sobre eventuais divergências no envio de dados dos segurados”. Disse que “os repasses à Receita Federal seguem sendo feitos regularmente desde a entrada do e-Social, em outubro de 2022”, e que “a atual gestão trabalha para garantir o melhor atendimento à população e está à disposição do órgão federal para sanar qualquer apontamento que seja realizado”.
Em entrevista à reportagem, o secretário-executivo de Gestão e Governo Digital, Luciano Sultani, afirmou que não teve acesso ao caso específico da professora Eliane, mas disse que, “em termos gerais, todos os recolhimentos têm sido feitos pelo Estado de São Paulo, ocorrido dentro do prazo que é estabelecido pela legislação”, mas é possível que haja “inconsistências” em alguns casos.
“Em alguns casos acabam acontecendo inconsistências entre as informações que são prestadas e as informações que já existem na base do governo federal. Muitas vezes são inconsistências relacionadas a nomes, relacionados, por exemplo, ao estado civil”, explicou ele. “O servidor muitas vezes acaba mudando algum dado pessoal e não atualiza em todas as bases disponíveis. É muito importante que o funcionário mantenha o seu cadastro atualizado junto ao órgão empregador.”
Eliane diz que não fez qualquer mudança cadastral no último ano.
A professora Eliane foi contratada em 2015 como professora da rede estadual de São Paulo, mas está afastada desde fevereiro de 2023 para o tratamento de um câncer de mama
Júlio César/TV Globo
Professores temporários
Depois de 15 anos trabalhando como corretora de planos de saúde e estudar história e sociologia, Eliane finalmente realizou o sonho de trabalhar como professora. Mas, apesar de dar aulas no ensino público estadual, ela não é servidora pública concursada. Seu contrato, sempre por tempo determinado, mesmo após renovação, é o da chamada “Categoria O” e se enquadra na “Nova Carreira Docente” do governo paulista.
Por isso, ela não tem direito a benefícios como estabilidade laboral ou acesso a atendimento de saúde no Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe).
A professora Eliane, que dá aulas em uma escola do Programa de Tempo Integral, não é a única nessa situação. Em maio de 2023, do total de 213.547 docentes da rede, 99.162 eram contratados como temporários pela Nova Carreira Docente, o equivalente a 46% do total.
Pela lei de 2009 que permite a contratação de docentes em caráter temporário, esses quase 100 mil contratados estão vinculados ao Regime Geral de Previdência Social, mantido pelo INSS e o mesmo dos funcionários com contrato CLT, por exemplo. Isso quer dizer que, no caso de afastamento por doença de mais de 15 dias, esses professores são encaminhados ao INSS para solicitação do auxílio.
No total, além dos professores contratados nessa categoria, Sultani diz que a Secretaria Estadual da Educação tem cerca de 130 mil servidores contratados como temporários, no mesmo regime previdenciário.
Entrave burocrático
O problema atual, de acordo com as informações de diversas autoridades e documentos obtidos pela TV Globo, é uma mudança nas exigências do governo federal para que órgãos públicos informem, no eSocial, as remunerações mensais. A nova regra passou a valer em outubro de 2022. Isso quer dizer que o desconto na folha de pagamento continuou sendo feito normalmente, mas parou de refletir no sistema Meu INSS, onde cada contribuinte pode consultar o saldo das contribuições.
Diversos professores ouvidos pela reportagem dizem que, ao consultar seu histórico, a última contribuição que aparece no sistema é justamente a de setembro de 2022, um mês antes da mudança.
O INSS explicou que “cabe ao empregador informar adequadamente os recolhimentos através do sistema eSocial, para que constem nos sistemas utilizados pelo INSS para a concessão de benefícios”.
Em um ofício do INSS encaminhado à deputada federal Professora Luciene Cavalcante (Psol-SP), a autarquia federal disse ainda que “a ausência de informações obrigatórias pelo ente contratante atrapalha as rotinas administrativas com prejuízo aos processamentos de benefícios, visto que a lei obriga à escrituração eletrônica e não há previsão de alternativa legal ao eSocial”.
Segundo Sultani, a Secretaria de Gestão e Governo Digital é responsável pela “consolidação” das informações, mas “a centralização dos dados para remessa por meio do eSocial é feita pela Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo”.
Comprovação a cargo dos professores
O entrave administrativo envolvendo os governos estadual e federal, que já vai completar um ano, acaba exigindo que esses professores busquem individualmente documentos a mais que comprovem o vínculo empregatício e as contribuições, já que o desconto na folha de pagamento deixou de ser suficiente.
O INSS informou que, no caso da professora Eliane, “é preciso apresentar documento comprobatório do vínculo funcional, tais como ato de nomeação e exoneração, dentre outros, acompanhado da Declaração de Tempo de Contribuição ao RGPS [Regime Geral de Previdência Social]”.
A nota continua: “Quando as remunerações forem objeto da comprovação, é preciso ainda que a declaração seja acompanhada da Relação das Remunerações que incidem Contribuições Previdenciárias. Esses documentos devem ser emitidos e fornecidos pelo órgão público ou entidade oficial.”
No caso do cálculo de contribuição para a aposentadoria, o INSS tem um passo a passo sobre como enviar a documentação.
Problema pune o elo mais fraco, diz especialista
Segundo Fernando Souza Júnior, advogado previdenciarista, no caso do vínculo do Regime Geral da Previdência Social, o desconto da contribuição é compulsório.
“Então, a obrigação do Estado é repassar essa contribuição ao INSS. E é obrigação da Receita Federal fiscalizar esse repasse, que as contribuições descontadas da professora, do trabalhador, cheguem aos cofres do INSS.”
Ele explica, porém, que “o que não pode é a professora ser penalizada”. De acordo com o advogado, nesse caso, a professora é o “elo mais fraco”.
“É uma relação econômica e jurídica de três pessoas: o Estado, que é o empregador, o INSS, que é a Previdência, e a trabalhadora. Ela é o elo mais fraco juridicamente, e a lei não impõe ao trabalhador essa fiscalização, de modo que o INSS não pode penalizá-la, não pode negar o benefício, não por esse motivo, dizer que ela não é mais segurada.” (Fernando Souza Júnior, advogado previdenciário)
Para Souza Júnior, o INSS poderia negar o auxílio com outras justificativas, como, por exemplo, se reconhecer que ela não tem problema de saúde. “Se ela passar por perícia e o INSS disser que ela não tem incapacidade, que ela tem que continuar trabalhando, isso é outra história. Agora, as condições como segurada ela mantém.”
Leia a íntegra das notas
Governo de São Paulo:
“O Governo do Estado de São Paulo, até o momento, não foi notificado pelo INSS sobre eventuais divergências no envio de dados dos segurados. Os repasses à Receita Federal seguem sendo feitos regularmente desde a entrada do e-Social, em outubro de 2022. A atual gestão trabalha para garantir o melhor atendimento à população e está à disposição do órgão federal para sanar qualquer apontamento que seja realizado.”
INSS:
“Cabe esclarecer que é a Receita Federal o órgão responsável pela arrecadação das contribuições previdenciárias. O INSS não possui informações sobre eventual falta de repasses de contribuição.
Informamos ainda que cabe ao empregador informar adequadamente os recolhimentos através do sistema eSocial, para que constem nos sistemas utilizados pelo INSS para a concessão de benefícios. Essas informações não vêm sendo corretamente fornecidas por alguns entes e a Superintendência Regional do INSS em São Paulo iniciou um trabalho no sentido de estabelecer tratativas com o Governo de Estado de São Paulo, com o objetivo de auxiliar com orientações quanto ao preenchimento do sistema.
Até que os órgãos públicos passem a encaminhar as informações pelo eSocial, e visando resguardar o direito aos benefícios previdenciários dos servidores públicos vinculados ao RGPS, é possível realizar a comprovação de vínculos e remunerações conforme previsão contida no art. 69 da Instrução Normativa PRES/INSS nº 128/2022: “apresentação de documento comprobatório do vínculo funcional, tais como ato de nomeação e exoneração, dentre outros, acompanhado da Declaração de Tempo de Contribuição ao RGPS – DTC, fornecida pelo órgão público ou entidade oficial.
Esses documentos podem ser anexados ao sistema do Meu INSS no momento do pedido do benefício, e serão analisados por servidor do Instituto.
Em atenção ao caso da senhora Eliane de Assis Monteiro, informamos que em abril ela teve um pedido de auxílio por incapacidade temporária negado por falta de comprovação de segurada, após a solicitação e cumprimento de exigência. A senhora Eliane protocolou recurso à Junta de Recursos, que está em análise por aquele órgão. Um segundo pedido foi protocolado e está em análise pelo INSS.
Em casos como o da senhora Eliane, como as contribuições não constam nos sistemas do INSS, para o reconhecimento do vínculo e das remunerações é preciso apresentar documento comprobatório do vínculo funcional, tais como ato de nomeação e exoneração, dentre outros, acompanhado da Declaração de Tempo de Contribuição ao RGPS. Quando as remunerações forem objeto da comprovação, é preciso ainda que a declaração seja acompanhada da Relação das Remunerações que incidem Contribuições Previdenciárias. Esses documentos devem ser emitidos e fornecidos pelo órgão público ou entidade oficial.”
Ministério da Previdência:
“Os trabalhadores podem consultar o CNIS, para verificar se o empregador está declarando as informações referentes a vínculos e remunerações, por meio do e-Social. Se estiver, não há nenhum prejuízo ao empregado quanto aos direitos previdenciários. Se tiver direito, o benefício previdenciário será concedido, e em um segundo momento, essa cobrança ao empregador é feita pela Receita Federal. Se o trabalhador verificar que as contribuições não estão aparecendo no CNIS, a orientação é guardar toda documentação comprobatória de vínculo e contribuições junto ao empregador, para que, quando do requerimento de benefício previdenciário, possa comprovar essas informações. O trabalhador não perde direitos, igualmente.”
Receita Federal:
“O eSocial é o instrumento de unificação da prestação das informações referentes à escrituração das obrigações fiscais, previdenciárias e trabalhistas e tem por finalidade padronizar sua transmissão, validação, armazenamento e distribuição.
Portanto, o descumprimento de obrigações relacionadas ao eSocial pode ensejar a aplicação de distintas penalidades por parte dos órgãos gestores do referido sistema, dependendo da situação.
Como decorrência da obrigatoriedade de resguardar o sigilo fiscal dos contribuintes, a Receita Federal não pode publicamente manifestar-se sobre casos específicos.
Apesar de, em função do sigilo fiscal, não poder se pronunciar sobre o caso concreto, a Receita Federal informa que sua atuação está passando por modificações. Estão sendo ampliadas as ações de orientação, antes do vencimento das obrigações, e de assistência, oportunizando a autorregularização. Caso os contribuintes não aproveitem essas oportunidades, são então aplicadas as ações de correção, a exemplo do que já ocorre com as declarações de pessoas físicas.”
Fonte: G1 Read More